quinta-feira, maio 19, 2005

Computadores Fazem Arte – Parte I


Foto by: Kalunga

A década de 1990 pertenceu à música eletrônica. Nenhum outro gênero musical cresceu, tomou forma e poder e se expandiu tanto quanto a música produzida por meio de instrumentos eletrônicos no período citado. Foi nesta década que definitivamente o espectro dos bits infestaram todos os poros da música pop, dos novatos atrás da última modernidade a medalhões do classic rock que ainda estavam vivos. U2, Mick Jagger, Radiohead, Madonna, Rob Halford, rock, pop, heavy metal, a sua mãe também – difícil é afirmar quem não correu (ou apelou, dependendo da perspectiva) atrás dos códigos binários. É caso de cegueira crônica ou de ignorância explícita ignorar tal fato. A dita “invasão” ocorreu forte e abrangente, e fez surgir aquelas velhas guerrinhas bobas tipo “o rock morreu, viva os DJs” ou “música eletrônica não possui alma”. A coisa foi tão grande que, se você não foi infestado, acabou tomando antipatia pelo negócio.

Nos anos setenta a eletrônica estava associada aos mastodontes do rock progressivo, com suas parafernálias enormes e caríssimas que ajudavam a distanciar cada vez mais a casta dos músicos virtuoses dos meros mortais que não estudaram seus instrumentos em conservatórios. Mas uma dupla de alemães bem cabeçudos (e, contradição máxima para muitos, com formação clássica e erudita) resolveu colocar em prática a influência seminal dos primeiros discos do Pink Floyd e do experimentalismo sonoro de Stockhausen e Jon Cage, e converteu tudo num minimalismo abissal, radicalmente eletrônico e inovador. A matriz foi um mero dispositivo para um conceito musical único, baseado em sonoridades basicamente rítmicas e com a melodia reduzida ao básico – ou simplesmente eliminada. Half Hutter e Florian Schneider, o cérebro teutônico da usina de força Kraftwerk (esta é a tradução literal do nome), como não poderia deixar de ser, foi categorizada como “a morte da música” – a mesma que veio a necessitar posteriormente de certos aparelhos para respirar.

Alguns fisgaram a isca. Giorgio Moroder pegou a disco music e a atolou em um inferno de sintetizadores kraftwerkianos. David Bowie, esperto e/ou visonário como sempre foi, adotou o Kraftwerk como banda favorita e gravou, no final da década de 70, os discos “Low” e “Heroes”, totalmente influenciados pela estética musical daqueles alemães. A new wave surgia como uma continuação do espírito “do it yourself” amplificado pelo punk rock – que naquele momento perdia seu fôlego. Enfim, nos anos oitenta, o valor baixo dos sintetizadores, seqüenciadores e baterias eletrônicas permitiu que cidadãos comuns (e não músicos abastados de conservatórios) pudessem produzir música puramente eletrônica também. Enquanto a estética oitentista privilegiava, na superficialidade do mundo pop, o exagero e o mau gosto na música e nas atitudes, outras pequenas revoluções aconteciam em subterrâneos de locais distintos como Chicago, Detroit, Londres, Nova York, Berlim e Bruxelas.

Muitos DJs de localidades distintas, deslumbrados com as possibilidades permitidas por algumas maquininhas eletrônicas, começaram a testar bases e seqüências com colagens típicas dos riscadores de vinil. Dali surgiram as bases para a dance music e seus sub-gêneros (house, techno, trance, etc.) e também para uma nova invasão da música negra: o rap/hip hop (não nos esqueçamos do dub, fruto das chapações canábicas nos estúdios da Jamaica). A eletrônica promoveu uma radical democratização na música ao permitir que gente com muita informação musical - mas sem qualquer formação em música - pudesse pôr em prática (no caso, no vinil) suas idéias. Por outro lado, a Europa e um gueto particular nos EUA (Chicago) levavam a fundo os preceitos do Kraftwerk na sua linha mais pesada e experimental. A chamada música industrial era séria, marcial, dançante e por vezes barulhenta. Tudo isso ocorreu nos anos oitenta. Nos subterrâneos não havia espaço para a banalidade estapafúrdia sempre associada a este período.

Chegamos aos anos noventa. A música eletrônica havia amadurecido e os instrumentos computadorizados estavam cada vez mais simplificados e acessíveis. Bastava apenas ocorrer o que se realizou de fato: uma verdadeira invasão por todos os cantos possíveis da música popular de todo o planeta. Sex Pistols se encontrou com os breakbeats (Prodigy); soul, funk, jamaica e hip-hop sombrio deram cria a algumas das mais belas peças da música contemporânea (Massive Attack, Portshead); ícones do pop/rock clamavam por participações em um disco da outrora banal dance music (Oasis, em quase todos os discos dos Chemical Brothers); a música industrial, difícil e pesada, ganhava lugar cativo como ídolos de adolescentes (Nine Inch Nails e sua cria Marylin Manson); o heavy metal, cujos músicos e fãs corriam da tecnologia como o diabo da cruz, adotaram os barulhos sintetizados (Ministry, Fear Factory, Rammstein); grupos de rock que ganharam o status de cult e inatingíveis enxergaram, sem preconceitos, que a eletrônica poderia expandir sua genialidade (Radiohead, U2); fora os guetos underground, que produziam novas variações da música eletrônica a todo momento... As reticências são necessárias aqui, pois é preciso deixar em aberto para não cometer injustiças ao esquecer de mais (muitos outros mais) alguma manifestação semelhante.

Onde eu quero chegar:

Precisei fazer uma espécie de “introdução” do tema para pôr em prática meu objetivo principal que se inicia aqui. A internet, desde o seu surgimento, vem provocando uma das maiores revoluções na produção e nas formas de se utilizar os meios de comunicação. Aquele papo entusiasta e por vezes apocalíptico ( baboseiras como “os livros não existirão mais”, “as pessoas só conversarão pelo computador”, “sexo virtual substituirá o contato humano direto”) já ficou para trás. É uma realidade presente. E, logicamente, a web também se tornou mais uma peça – poderosíssima – de disseminação de toda forma de cultura, inclusive a da música eletrônica. Softwares de produção musical circulam livremente pela rede, permitindo o acesso a qualquer um por meio de um simples download.

Todo o processo de evolução que descrevi nos parágrafos anteriores deságua no objetivo principal deste texto: entrevistar e colocar em debate três pessoas que escolhi por estarem envolvidas diretamente no final deste processo todo, a partir do momento que se utilizam de tudo o que fora citado para simplesmente dar vazão às suas idéias em forma de música eletrônica. Não vou ganhar nada com isso além de enfocar algo que me dá bastante prazer e do qual estou envolvido há bastante tempo. Tanto tempo que escrevi tudo isso por conta do que me veio à cabeça no momento, do que venho assimilando com afinco ao longo de mais quase vinte anos anos. O universo da música eletrônica pode parecer bastante vazio para os leigos ou desinteressados que vêem um bando de gente gastando suor e torrando neurônios com anfetaminas numa pista de dança com som repetitivo. Isso rola também, mas esta superficialidade está longe de resumir o que penso sobre isso tudo.

*A entrevista com os três será publicada muito em breve, pois só depende de apenas um responder às perguntas. Depois haverá uma audição de suas produções próprias em um lugar em comum, jogarei algumas cartas na mesa para o debate, e publicarei o resultado aqui. Aos interessados, que fiquem ligados.

domingo, maio 08, 2005

A noite não é uma criança


Hora do acerto de contas! Logicamente, se eu tivesse batido uma foto de verdade disso, não estaria vivo aqui para contar a história...
Foto by Kalunga



Acerto de contas. Revólver na cintura. Pó e wisky (batizado) na mesa. Gente falando besteira. Gente falando besteira e alto. Gente esquentada, falando besteira e alto. Ninguém parece se entender. Uns poucos na verdade entendem tudo e estão prontos para puxar o tapete da maioria. No meio disso, umas biscates chamam para uma bolinada. Todas as intenções são as piores possíveis. Parece enredo de Nelson Rodrigues. Não é filme. É real e acontece nos bastidores da sua diversão noturna. Enquanto você bebe a última cerveja precedendo a partida para o retiro de seu lar, o bicho pega no exato momento onde, para a grande maioria, a diversão se encerra. Trabalhar “na noite” é uma profissão – perdoem-me a expressão - cachorra, onde se dá bem quem morde mais forte e quem se dá mal é aquele que só fica latindo.

Botando som para as pessoas dançarem ou cobrindo eventos como jornalista em um curto período de seis anos, pude presenciar cenas dantescas, deprimentes e perigosas como as descritas no começo do texto – muitas vezes com todas as situações acontecendo ao mesmo tempo. Profissões como dono de bar e de casa noturna, empresário de banda, músico, roadie e segurança constantemente têm que lidar com situações onde a remuneração pode não sair, o calote é eminente, a putaria rola solta, a lábia do próximo é sempre mais forte e a alma de ninguém vale nada. Bancar este meio de vida não necessariamente significa que você seja um escroque da pior estirpe. Mas a minha curta vivência (superficial, diga-se) me mostrou que neste universo os bons meninos não sobrevivem – ou ganham muito, mas muito pouco mesmo.

Vejam bem: dificilmente algum profissional do famigerado circuito noturno ganha salário fixo. A grana provém de cachês e/ou divisão de lucros. A quantidade de atravessadores dos quais passa o dinheiro é enorme. Segurança, namorada(o), garçom, técnico de som, músico, empresário, patrocinador, dono da casa... enfim, todos são suspeitos na hora de repartir a grana ou pagar os serviços contratados. A maioria sua frio ao ver centenas de notas graúdas passando em suas mãos. Algumas (muitas!) sempre ficam no caminho, inclusive cabeças também são derrubadas neste percurso. A única lei que vale é a lei do cão. Definitivamente este tipo de trabalho não é para notívagos deslumbrados. A noite não é uma criança. Pelo pouco que pude presenciar neste meio (que para mim foi mais do que o suficiente), prefiro ser uma criança mesmo. Deixo o trabalho sujo (bota sujo nisso) com os macacos-velhos da área. A sabedoria deles está fora do meu alcance. Ainda bem.

domingo, maio 01, 2005

Meu Deus, Que Onda!


Foto by Kalunga

Parafraseando o título do blogg do meu amigo Caio, “Meu deus, que onda!” reflete para mim um paradoxo extremo de duas atividades que tomam/tomaram um espaço enorme dentro de mim. Tal (des)encontro de situações se deu no momento em que olhei para a foto acima e me dei conta da situação da qual ela foi registrada: fim de rock, feliz por ter feito o que gosto, mas também com uma puta vontade de apreciar aquele amanhecer de outra maneira. Meu deus, que onda... O sentido desta frase era outro até uns seis anos atrás. Não bateu melancolia, mas despertou uma chama que nunca se apagará dentro de mim. A onda que eu me refiro é aquela produzida pelo oceano. É o ato maravilhoso de deslizar sobre o mar. É o surfe, porra!

Quem me vê na noite, botando som para as pessoas dançarem, terminando minha balada numa padaria às sete da manhã, não imagina que este ser aqui – praticamente um vampiro que vai dormir quando o sol aparece – já pegou onda por doze anos seguidos, religiosamente. De 1987 a 1999 eu pratiquei um tipo de esporte que considero o mais sensacional, prazeiroso, encantador, espiritual (é sério!) e belo como este. Um bom dia de surfe cura sua alma de qualquer mal – clichezão mas verdadeiro. Por mais passivo e cabeça-de-vento que o estereótipo do surfista lhe possa parecer, o praticante deste esporte é um ser privilegiado, ainda que ele não se dê conta disso. A sensação, por exemplo, de deslizar por dentro da onda (o tubo) é orgásmica. Não à toa que muitos surfistas são aqueles típicos figuras meio bobocas (pelo menos os mais novos), cheios de gírias estúpidas e papos vazios: o surfe te entorpece, tal qual uma droga poderosa e viciante, e se você der mole ela te controla. Resumindo, é bom demais.

Quando eu era mais novo, estudava na parte da manhã e tinha as tardes livres. Como sempre morei de frente para a praia de Camburi, era notório de que a prática do surfe era algo mais esporádico, pois só rolava onda em situações de mar de ressaca e/ou frente fria. Todo santo dia eu pegava minha bicicleta e andava até o segundo píer (na região de Jardim Camburi) para conferir se havia algum balanço no mar. De 365 dias no ano, talvez uns trinta em média realmente produziam alguma coisa surfável nesta praia. Mesmo tendo plena noção de que certas condições climáticas inviabilizavam a produção de alguma marola surfável em Camburi, eu ia lá com minha magrela pedalando na esperança de rolar algo de surpresa. Pois é, o surfe também é um exercício de fé. E várias vezes ao longo destes doze anos de prática recebi o presente dos deuses e pude surfar altas ondas com uns poucos dentro d’água que também praticavam tal exercício religioso.

Ficava de duas da tarde até o anoitecer direto na água, sem sair para descansar, como que temesse que as ondas fossem embora do nada. Voltava arrastando a minha carcaça por longos três quilômetros até minha casa, com o vento sul gelado contra, com os músculos doendo e com minha alma plenamente satisfeita. Chegava em casa morto de fome, tremendo de frio e, depois de descongelar meus ossos com um longo banho quente e de bater um rango monstro, simplesmente dormia cedo (tipo umas nove da noite) o sono divino. Muitas vezes as ondas do píer de Camburi eram mal formadas, mexidas e com o tempo frio e a água sempre poluída (eu acho que meu corpo criou imunidade a doenças, só pode...). Mas se desse umas ondinhas eu estava lá! Isso sem contar as viagens para locais clássicos como Itacaré (sul da Bahia), Regência/Povoação (norte do Estado, na foz do Rio Doce), Ubatuba (litoral norte de São Paulo)... Conhecer um pouco mais o Brasil pegando onda é realmente um privilégio.

Parece nostalgia, mas não é. Estou chegando numa idade em que as obrigações com a sociedade pouco permitem uma dedicação mínima a este tipo de esporte. Mas, tendo condições básicas (grana para a gasolina do carro, uma prancha que não seja um toco) você consegue achar um espaço na tua rotina, seja surfando ainda escuro, seja deixando de sair à noite no final de semana para poder acordar quatro da manhã e ser o primeiro dentro d’água. Não engulo desculpas esfarrapadas da maioria das pessoas que alegam não ter tempo. Eu acho que falta mesmo é disposição. E não acredito que idade avançada, filhos e a famosa barriguinha de cerveja sejam empecilhos, pois cansei de topar com caras com mais de quarenta anos no lombo, com vários quilos a mais na balança, mas com um sorriso genuíno de felicidade ao entrar na água com sua prancha.

Não sou um professor de educação física, mas afirmo com convicção e conhecimento de causa que o surfe é um esporte perfeito, pois trabalha praticamente toda a musculatura do corpo, oxigena e purifica teu organismo e, principalmente, dotado de um prazer absurdo na sua prática. O que não se pode fazer é surfar cedo após uma noite de detonação. Eu já cometi esta besteira diversas vezes. O surfe requer hábitos saudáveis. E é isso que estou procurando reconquistar. É muito difícil conciliar uma vida noturna movimentada com este tipo de esporte. De algum lado terei que abrir mão mais intensamente. E estou decidido. Você também poderia surfar. Garanto que tua alma será recompensada.

*Eu nunca fui um típico “surfista” mesmo ao pé da letra. Não sentia a menor vontade de andar com aquelas pessoas que estereotipavam erroneamente o “ser surfista”. Na maioria das vezes estava sozinho e os poucos que já me acompanharam foram porque eu os convenci a surfar também.
*Particularmente eu detesto tais tipos que reforçam o estereótipo. A maioria destes rabeia a onda dos outros, instala um nefasto clima de competição dentro d’água e ainda por cima polui o meio ambiente – cansei de ver surfistinha matando sua larica com o som de seu carro no máximo e deixando o lixo no chão sem a menor culpa disso.
*Se você for tentar começar a surfar no Solemar ou no Barrote (em Jacaraípe, Serra) num final de semana, certamente tua experiência será desagradável.