
Foto by: Kalunga
Existem sons de pista de dança que são atemporais, cujas batidas e melodias nunca ficam velhas. Pois é, tal proeza é raríssima, principalmente pelo fato de que a dance music propriamente dita (techno, house, trance, etc.) depende tanto de recursos tecnológicos que o prazo de validade de suas produções expira rapidamente – o recurso da “atualidade” é de uma constante meio doentia. Por exemplo: você, que tenha um mínimo de interação com a “cena eletrônica”, consegue imaginar algo mais datado hoje do que aquelas misturas de drum’n’bass com bossa nova/mpb estilo Kaleidoscópio? Ao mesmo tempo, o que era considerado o supra-sumo do ultrapassado, a acid house, de uns dois anos para cá, vem experimentando um hype fervoroso, com direito às velhas linhas ácidas da TB-303 (sintetizador de baixo pré-histórico da Roland - ouça o álbum “20 to 20”, do mega DJ Josh Wink). O que dirá, então, do electro, que atualmente infesta todas as sub-divisões da música eletrônica com seus timbres deliciosamente retrô?
No final das contas, o que fica para trás neste segmento acaba por interessar somente àqueles que se preocupam em fazer dançar e não àqueles que apenas dançam numa pista. Justamente são os DJs que lançam as tendências, promovem revisões do passado e modernizam-no. É um processo contínuo, que a cada dois anos, em média, determina que um ou dois gêneros musicais sejam os mais “modernos e atuais”. O que será das pistas de dança em 2008, por exemplo? Disco music a lá anos 70 infestando house, tecnho e adjacências? Ou teríamos misturas improváveis de minimal techno com trance dominando as tendências daqui a três anos? Sei lá! Vou apenas escrever sobre algo que está sendo e sugerir algo que poderia ser.
Psicodelia eterna
Conheci o tal do trance psicodélico numa época em que este se encontrava em plena fase de transição, entre o primal goa trance, de fortes linhas melódicas e criado por alemães que piravam a cabeça nas praias de Goa (Índia) desde o começo dos anos 90, e o então eminente israeli trance, produzido por jovens de Israel e de características mais frias e pesadas. Meu primeiro contato com este universo se deu em Trancoso, no carnaval de 1998, numa rave realizada na beira da praia (eu já descrevi a ocasião no post “Rave on U – parte I”, nos arquivos do mês de março). Eu e meus amigos Tourco e Mentor vimos, sem saber direito o que estava acontecendo, um live PA do projeto francês Total Eclipse. Logo depois, o Tourco foi caçar na internet sons daquele trio (formado pelos exímios produtores Stephen Howleck, Serge Souque e Loic Van Pocke) e acabamos por eleger a música do TE como o topo em qualidade no quesito “trance”. Ouvindo hoje o álbum duplo “Violent Relaxation” (de 1999) e comparando-o com o padrão vigente na produção de psy trance dos últimos três anos, fica evidente que o Total Eclipse se tornou impróprio para rivalizar com os nomes mais atuais do gênero - o principal motivo é a (falta de) pressão nas bass lines se comparada com o padrão atual. Mas o som deste trio francês vai muito além dos limites restritos de um gênero específico. Os tradicionais climas estilo invasão alienígena do goa trance se fundem com sacadas melódicas referenciais que vão de samples de gritos e sirenes do big beat de Chemical Brothers e Prodigy, a batidas minimalistas vindas direto do Kraftwerk. A pegada dos caras muitas vezes era puramente roqueira, com direito a viradas de bateria e solos de synth dignos de uma guitarra elétrica (vide a faixa “Can’t do That”). As músicas puramente dançantes não se prendiam a BPMs rígidos – variavam de 130 a 148 batidas por minuto, pois cada faixa possuía vida própria. Nas faixas destinadas ao chill out, a criatividade destes caras aflorava ainda mais, com os tradicionais cânticos orientais e cascatas de notas melódicas podendo se transformar num breakbeat poderoso ou dar lugar a um violento solo de guitarra de verdade. O som do Total Eclipse é discoteca básica em música eletrônica!
*O psy trance, na minha opinião, está totalmente estagnado musicalmente, e entregue a um público que perpetua uma mentalidade (ou seria a falta dela?) cabeça-de-bagre de só depender de melodias óbvias e com a garantia certa de bombar a pista. Não há mais inovação nem renovação que me façam perder o tempo com este universo. Eu apostaria na fusão do peso atual com as melodias do antigo goa trance. Alguém aí se dispõe?
**O Total Eclipse acabou. Alguns projetos surgiram, como o Antidote e outros. O nível de qualidade diluiu-se quando cada um dos três foi para o seu canto, mas ainda vale à pena procurar as produções que envolvam os nomes de Stephen Howleck, Serge Souque e Loic Van Pocke.
Na quebrada
O termo breakbeat surgiu do hip-hop, por conta de cortes e quebradas de ritmo feitos ali, na hora, nos toca-discos, dando origem a novas músicas. No final dos anos 80/início dos 90’s, era sinônimo de anarquia sonora, dando cria ao jungle (pré-drum’n’bass) e ao hardcore techno (pré-gabba), com suas violentas e rápidas rajadas rítmicas. No meio da década passada desmembrou-se no big beat, com batidas mais lentas e grooveadas, e uma estreita relação com o rock – a era de grandes álbuns eletrônicos (antes só haviam singles) de Prodigy, Chemical Brothers, Leftfield, Crystal Method, entre outros. No começo desta década o breakbeat voltou com força, por conta de batidas mais organizadas (menos barulhentas e quebradas que o big beat) e fundindo-se com electro, house, techno e o que mais vier à cabeça. Transformou-se em um gênero forte, sólido e irresistivelmente dançante, englobando tudo o que veio antes, criando novas formas a todo momento. Plump DJs, Drumattic Twins, Lee Coombs, Soul of Man e Meat Kattie estão na linha de frente do breakbeat, e o selo Finger Lickin é a principal matriz destes abalos sísmicos sonoros. O gênero atualmente encontra-se numa maturidade impressionante, mesmo sendo considerado o estilo que mais engloba referências diversas. Batidões electro-funk podem ser acompanhados por synths psicodélicos e vozeirões de soul music numa mesma faixa, por exemplo. Às vezes parece que James Brown e Funkadelic foram robotizados (Soul of Man); noutras o Prodigy surge ainda mais bombástico que antes (Plump DJs - definitivamente o maior nome da cena – no single “Get Kinky”); em certos momentos uma avalanche de percussão africana se sobrepõe a pesados beats digitais (Lee Coombs); a house music é estuprada com bass lines cavalares e quebradas de ritmo perfeitas (Meat Kattie); e os anos 80 são postos no caldeirão dos breaks atuais (Drumattic Twins). E esta galera toda acaba se cruzando (ops!), se remixando e produzindo juntos a torto e a rodo. Os breaks voltaram para ficar!
*Logicamente o breakbeat não se restringe a estes artistas/selo. Há muitos outros afluentes por aí, produzindo boa música para as pistas. Tal gênero musical, em termos de downloads na internet, ainda é bastante restrito a singles em vinil, portanto, meio chatinho de achar.
**Segundo o Marcel, que recentemente fez uma gig pela Europa com sua banda Zémaria, o breakbeat já se encontra num estágio em que o hype no clubes underground já o vem descartando entre os mais antenados, dando vazão a fusões de breaks, electro e house como os italianos do Pressalaboys. Olha aí a música eletrônica e sua fome doentia de se atualizar constantemente – para o nosso bem!

Steve Albini é considerado o Mestre da Sujeira, aquele cara que faz as bandas mais selvagens soarem ainda mais primitivas, ao mesmo tempo em que todos os instrumentos são captados na sua mais pura beleza barulhenta e de forma incrivelmente nítida. Fez parte de combos radicais (nos anos 80) como Big Black e Rapeman, onde baterias eletrônicas toscas serviam de base para verdadeiros estupros sonoros. Como produtor, é sempre requisitadíssimo, tanto por bandas underground que queiram dar um tapa mais profissa na sua sujeira, quanto por bandas pop que queiram garantir uma moral para com a turminha alternativa – exceção honrosa ao Nirvana e o seu maravilhoso “In Utero”. Pois onde estava com a cabeça o Albini quando pegou para produzir uma banda gótica?!? O Userhouse, banda californiana por azar do destino (a californication teria produzido sua cria mais bizarra de todos os tempos?!?), é soturna, triste e sorumbática, querendo fazer nevar nas areias de Venice Beach. Pratica um mix excepcional de rock gótico tradicional (Bauhaus é a sua maior referência) com climas e sintetizadores sombrios (a face industrial), tudo isso misturado a guitarras sujas e pesadas – cortesia do humor de Mr. Albini na mesa de som. Ótimas canções estão registradas neste “Molting” (1994). É para bater a cabeça e se deprimir – e nada a ver com aquela xaropada do tal do gothic metal, por favor!
Existem bandas que são tão influentes em seus segmentos, que geram crias baseadas tão somente em algumas músicas específicas suas. É o caso do Sisters of Mercy, talvez a maior referência em termos de “som gótico” que vemos atualmente. O dinamarqueses do Diary of Dreams, por exemplo, se basearam única e exclusivamente na música “Flood” (ao meu ver, é claro), do clássico álbum “Floodland” (1987), da turma morcegóvia de Andrew Eldritch. A faixa citada criou um mix de electro/EBM/industrial bem pesado, junto ao seu estilo único de gothic rock, com os vocais de Andrew mais graves e fantasmagóricos do que nunca, e recheando tudo ainda com camadas de guitarras assombrando os canais de som. O Diary of Dreams, logicamente, não é uma repetição de uma nota só. Mas deve a sua alma sofrida a esta música. Edward Mãos de Tesoura iria cortar sua própria cabeça de alegria/tristeza com esta banda.
Outra banda mais do que influente ao pessoal das catacumbas é o Depeche Mode, que gera clones a cada esquina escura. Uma destas cópias começa a criar vida própria e a produzir um tipo de música cada vez mais especial: o Mesh. Mais guitarras, mais peso, mais melancolia - a banda adiciona também influências do Nine Inch Nails nesta mistura, tornando-os ídolos entre os guetos mais sombrios da Europa (seus discos nem são lançados nos EUA). Lembrando: eles fazem canções para cantar – e chorar – junto. Chega a ser pop – para os padrões de “O Corvo”, é claro.
A Alemanha é prolífica em matéria de música gótica. A quantidade de bandas apostando no lado negro da força que brotam de lá é absurda, com o termômetro de qualidade sempre batendo lá em cima. O Wolfsheim começa a se tornar grande entre os cemitérios alemães. Eles praticam uma mistura de rock gótico com elementos eletrônicos – peraí! Eu já vi este filme antes! Ok, tudo bem, eles não fazem nada de novo. Mas o som deles é lindo, porra! Percebe-se uma finesse, um bom gosto absurdo em suas melodias e arranjos. É belo, é encantador, é poeticamente triste e contemplativo. “Casting Shadows” (2003), com suas canções em alemão e inglês, é o disco perfeito para ouvir ao lado de sua musa gótica, bebendo vinho com sangue, chorando e sorrindo juntos ao mesmo tempo, observando a chuva cair pela janela.
Vomito Negro dá medo, a começar pelo próprio nome desta banda belga. Há uns oito anos atrás, encomendei o maravilhoso álbum “A New Drug” (1990), através de uma difícil conexão européia (o cd veio escrito “made in Austria”). Paguei caro para me assustar! O estilo desta banda remete diretamente à EBM clássica pois, afinal, este gênero musical partiu dos conterrâneos do Front 242 que, em 1981, criaram uma cena local fortíssima. Pois bem, o Vomito Negro (o nome é esse mesmo!) partiu da citada “EBM clássica” para costurá-la com alguns dos climas mais soturnos que se têm notícia - usei até em trilha de história de terror na faculdade! Já o álbum “Wake Up!” (1992 – tenho em mp3), é mais voltado à EBM, mas igualmente poderoso. Ouça e vomite negro!

