
Foto by: Kalunga
A década de 1990 pertenceu à música eletrônica. Nenhum outro gênero musical cresceu, tomou forma e poder e se expandiu tanto quanto a música produzida por meio de instrumentos eletrônicos no período citado. Foi nesta década que definitivamente o espectro dos bits infestaram todos os poros da música pop, dos novatos atrás da última modernidade a medalhões do classic rock que ainda estavam vivos. U2, Mick Jagger, Radiohead, Madonna, Rob Halford, rock, pop, heavy metal, a sua mãe também – difícil é afirmar quem não correu (ou apelou, dependendo da perspectiva) atrás dos códigos binários. É caso de cegueira crônica ou de ignorância explícita ignorar tal fato. A dita “invasão” ocorreu forte e abrangente, e fez surgir aquelas velhas guerrinhas bobas tipo “o rock morreu, viva os DJs” ou “música eletrônica não possui alma”. A coisa foi tão grande que, se você não foi infestado, acabou tomando antipatia pelo negócio.
Nos anos setenta a eletrônica estava associada aos mastodontes do rock progressivo, com suas parafernálias enormes e caríssimas que ajudavam a distanciar cada vez mais a casta dos músicos virtuoses dos meros mortais que não estudaram seus instrumentos em conservatórios. Mas uma dupla de alemães bem cabeçudos (e, contradição máxima para muitos, com formação clássica e erudita) resolveu colocar em prática a influência seminal dos primeiros discos do Pink Floyd e do experimentalismo sonoro de Stockhausen e Jon Cage, e converteu tudo num minimalismo abissal, radicalmente eletrônico e inovador. A matriz foi um mero dispositivo para um conceito musical único, baseado em sonoridades basicamente rítmicas e com a melodia reduzida ao básico – ou simplesmente eliminada. Half Hutter e Florian Schneider, o cérebro teutônico da usina de força Kraftwerk (esta é a tradução literal do nome), como não poderia deixar de ser, foi categorizada como “a morte da música” – a mesma que veio a necessitar posteriormente de certos aparelhos para respirar.
Alguns fisgaram a isca. Giorgio Moroder pegou a disco music e a atolou em um inferno de sintetizadores kraftwerkianos. David Bowie, esperto e/ou visonário como sempre foi, adotou o Kraftwerk como banda favorita e gravou, no final da década de 70, os discos “Low” e “Heroes”, totalmente influenciados pela estética musical daqueles alemães. A new wave surgia como uma continuação do espírito “do it yourself” amplificado pelo punk rock – que naquele momento perdia seu fôlego. Enfim, nos anos oitenta, o valor baixo dos sintetizadores, seqüenciadores e baterias eletrônicas permitiu que cidadãos comuns (e não músicos abastados de conservatórios) pudessem produzir música puramente eletrônica também. Enquanto a estética oitentista privilegiava, na superficialidade do mundo pop, o exagero e o mau gosto na música e nas atitudes, outras pequenas revoluções aconteciam em subterrâneos de locais distintos como Chicago, Detroit, Londres, Nova York, Berlim e Bruxelas.
Muitos DJs de localidades distintas, deslumbrados com as possibilidades permitidas por algumas maquininhas eletrônicas, começaram a testar bases e seqüências com colagens típicas dos riscadores de vinil. Dali surgiram as bases para a dance music e seus sub-gêneros (house, techno, trance, etc.) e também para uma nova invasão da música negra: o rap/hip hop (não nos esqueçamos do dub, fruto das chapações canábicas nos estúdios da Jamaica). A eletrônica promoveu uma radical democratização na música ao permitir que gente com muita informação musical - mas sem qualquer formação em música - pudesse pôr em prática (no caso, no vinil) suas idéias. Por outro lado, a Europa e um gueto particular nos EUA (Chicago) levavam a fundo os preceitos do Kraftwerk na sua linha mais pesada e experimental. A chamada música industrial era séria, marcial, dançante e por vezes barulhenta. Tudo isso ocorreu nos anos oitenta. Nos subterrâneos não havia espaço para a banalidade estapafúrdia sempre associada a este período.
Chegamos aos anos noventa. A música eletrônica havia amadurecido e os instrumentos computadorizados estavam cada vez mais simplificados e acessíveis. Bastava apenas ocorrer o que se realizou de fato: uma verdadeira invasão por todos os cantos possíveis da música popular de todo o planeta. Sex Pistols se encontrou com os breakbeats (Prodigy); soul, funk, jamaica e hip-hop sombrio deram cria a algumas das mais belas peças da música contemporânea (Massive Attack, Portshead); ícones do pop/rock clamavam por participações em um disco da outrora banal dance music (Oasis, em quase todos os discos dos Chemical Brothers); a música industrial, difícil e pesada, ganhava lugar cativo como ídolos de adolescentes (Nine Inch Nails e sua cria Marylin Manson); o heavy metal, cujos músicos e fãs corriam da tecnologia como o diabo da cruz, adotaram os barulhos sintetizados (Ministry, Fear Factory, Rammstein); grupos de rock que ganharam o status de cult e inatingíveis enxergaram, sem preconceitos, que a eletrônica poderia expandir sua genialidade (Radiohead, U2); fora os guetos underground, que produziam novas variações da música eletrônica a todo momento... As reticências são necessárias aqui, pois é preciso deixar em aberto para não cometer injustiças ao esquecer de mais (muitos outros mais) alguma manifestação semelhante.
Onde eu quero chegar:
Precisei fazer uma espécie de “introdução” do tema para pôr em prática meu objetivo principal que se inicia aqui. A internet, desde o seu surgimento, vem provocando uma das maiores revoluções na produção e nas formas de se utilizar os meios de comunicação. Aquele papo entusiasta e por vezes apocalíptico ( baboseiras como “os livros não existirão mais”, “as pessoas só conversarão pelo computador”, “sexo virtual substituirá o contato humano direto”) já ficou para trás. É uma realidade presente. E, logicamente, a web também se tornou mais uma peça – poderosíssima – de disseminação de toda forma de cultura, inclusive a da música eletrônica. Softwares de produção musical circulam livremente pela rede, permitindo o acesso a qualquer um por meio de um simples download.
Todo o processo de evolução que descrevi nos parágrafos anteriores deságua no objetivo principal deste texto: entrevistar e colocar em debate três pessoas que escolhi por estarem envolvidas diretamente no final deste processo todo, a partir do momento que se utilizam de tudo o que fora citado para simplesmente dar vazão às suas idéias em forma de música eletrônica. Não vou ganhar nada com isso além de enfocar algo que me dá bastante prazer e do qual estou envolvido há bastante tempo. Tanto tempo que escrevi tudo isso por conta do que me veio à cabeça no momento, do que venho assimilando com afinco ao longo de mais quase vinte anos anos. O universo da música eletrônica pode parecer bastante vazio para os leigos ou desinteressados que vêem um bando de gente gastando suor e torrando neurônios com anfetaminas numa pista de dança com som repetitivo. Isso rola também, mas esta superficialidade está longe de resumir o que penso sobre isso tudo.
*A entrevista com os três será publicada muito em breve, pois só depende de apenas um responder às perguntas. Depois haverá uma audição de suas produções próprias em um lugar em comum, jogarei algumas cartas na mesa para o debate, e publicarei o resultado aqui. Aos interessados, que fiquem ligados.